Dispenso definições. Escolho pela metamorfose de escrever livre, longe de qualquer vulto de encaixe. Se me perguntarem sobre o que é isso, hesito em responder. Apenas sinto...

quarta-feira

Frederico Lazarus em coma literário

(...) Ele é somente espelhos. Nada mais além dele próprio tinha reflexo naquele mundo. Quando se encarava sabia que ali estava um lindo rosto manchado de pura vaidade. Talvez não fosse sua culpa tamanha idolatria. Um pouco daquilo que ele guardava vinha dos outros, que cultivavam ainda mais a semente da beleza imposta. Isso mesmo, ele era um impostor. Não era egoísta, nem tampouco egocêntrico. Era verdadeiramente um admirador em potencial de seu auto-modelo. Para alguns soa cruel não pensar em egoísmo nessas circunstancias de beleza, mas ele sabia o quanto aquilo doía dentro dele. “Beleza dói, e muito. Quisera eu eliminar boa parte dessa dor e viver livre. Liberdade quase sempre se esbarra na vaidade”, afirmava resignado. Frederico Lazarus pagava o preço de ser assim, e ele não era hipócrita a ponto de admitir que não queria que fosse desse modo. Culpado ou inocente, ele simplesmente se adorava, e isso era seu prazer e seu martírio. (...)

Nessas linhas simplórias se encontra um personagem que precisa tomar corpo, ainda paira sobre ele um mistério aterrorizante para mim. Frederico Lazarus talvez seja mais uma dessas criações ociosas que perduram como um calo crônico. Mas solucionarei o mais breve possível esse vácuo, caso contrário a vida desse embaçado personagem cairá na lixeira de meu computador como outras ideias abortadas da minha cabeça, ou ficará latejando dentro de um arquivo Word como assunto congelado e minúsculo. 

terça-feira

Agradecimentos Sinceros ao Papel Nulo


Escrever é algo louco. Parece uma tormenta de pensamentos conduzidos por um furacão de impulsos e desejos. Às vezes penso: escrever para quê? Ou melhor: por que? Ou profundamente: para quem? Não sei o que me conduz a colocar palavras soltas, muitas sem lógica ou razão,em um papel que se encontrava nulo. Hum..., (...) talvez esteja aí um motivo! O papel!!! O papel nulo!!! Talvez não quisesse que permanecesse mais vazio, solitário, sem função alguma. O papel estava lá, esperando alguém desvirtuá-lo e tirar-lhe a pureza, a brancura, a paz, e o transformar num aglomerado de fragmentos estranhos a ele. Talvez esteja aí um real motivo de escrever: um simples papel. Muitos devem pensar que isso é algo absurdo e digno de desprezo. Outros acharão que estou em delírio insano ou que não estou saudável para com as minhas faculdades mentais. Pois digo a você, leitor: não, não se trata de banalidade ou alucinação. Se trata do simples fato de que não escreveríamos se não tivéssemos algo pronto para nos receber, algo virgem e intocável para podermos desconfigurá-lo. O papel em branco nos oferece tudo que precisamos: a ausência. É dessa ausência que se faz a presença, que se constrói a vida em palavras, que se desestrutura os sentimentos e se molda fragmentos. Agradeço sinceramente ao papel em branco, nulo ou vazio a chance de poder esboçar uns traços dos meus devaneios e perturbações.

segunda-feira

Multiplicidade


Eu sou muitos
dentro de um único.
Um único que,
por ter tantos,
não é ninguém.
Um ninguém que,
às vezes, é tudo.
Um tudo que,
quase sempre,
é o nada.

domingo

Bufo & Spallanzani (2001)


Antes de tudo, o que chama a atenção é o nome do filme. É curioso um filme brasileiro intitulado Bufo & Spallanzani. E com a sinopse lida, a curiosidade aumenta, pois se trata de um mistério, uma trama investigativa daquelas não típicas do cinema nacional. E realmente foi. Bufo & Spallanzani  mostra que o Brasil pode e consegue fazer boas obras fora dos temas sociais e dos apelos corporais, uma demonstração que nosso cinema é sólido e versátil. E logo no início a expectativa cresce, e não decepciona aqueles que buscam uma dose de suspense com tons nacionais. Na história há mortes misteriosas, detetives analíticos, romance, traição, e sapos à vontade (o nome Bufo remete a uma espécie de sapos, por isso o título). Um dos ganchos interessantes do filme é resolver uma suposta morte, que na verdade se trata de um estado temporário de coma profundo causado pela mistura do veneno do sapo Bufo com uma planta, que deixa o individuo como se estivesse morto, mas de fato não está. Outro ponto é desvendar a morte de uma mulher rica, supostamente tida como suicídio, mas cercada de aspectos ocultos que envolvem vingança e amor. O elenco conta com José Mayer, que foge da sua comum caracterização como galã conquistador e interpreta um investigador perspicaz; Tony Ramos, que também fez um bom papel como um policial obstinado; Gracindo Junior, como o marido traído e mau caráter; e a participação especial de Maitê Proença, como a mulher misteriosamente morta ou suposta suicida. O desenrolar da trama é instigante, e não há a excessiva ação de filmes policiais, e sim maciços diálogos que prendem a atenção do espectador. Porém, esperava um final mais grandioso, um pouco menos simplista no desfecho. Mas tem uma reflexão coerente em torno de sua conclusão, que nos faz pensar no caráter relativo do certo ou errado, ou seja, da natureza ambígua do ser humano. Não é um filme top 10, mas tem seu espaço na nova safra de ousadas produções brasileiras que apostam em temáticas inovadoras para a sétima arte no país. 

sábado

Bent (1997)



Mesclando duas fortes temáticas, a homossexualidade e a Alemanha Nazista, esse filme traz uma beleza por trás da tristeza. Já é de se imaginar o que se passava dentro dos campos de concentração à época da ditadura hitleriana, agora acrescente a esse contexto um romance entre dois homens em um ambiente hostil. O resultado é de uma mistura explosiva nesse drama de 1997, intitulado Bent. A produção, do diretor Sean Mathias (mais conhecido como diretor de teatro), é inspirada na peça com o mesmo nome. O filme foca no relacionamento entre dois presos que se apaixonam, sendo que um deles, Max, interpretado brilhantemente por Clive Owen (A Identidade Bourne, Closer – Perto Demais, Sin City), quando entra na prisão não assume a sua verdadeira identidade como gay, e usa uma estrela amarela (que representa os judeus) ao invés de um triângulo rosa (que representa os homossexuais). Max conhece então Horst (Lothaire Blutheau), que usa com orgulho o triângulo rosa, e a partir de então os dois enfrentarão conflitos pessoais e limitações ferozes para alimentar essa paixão. É incrível como os dois conseguem estabelecer uma relação intima dentro de toda essa hostilidade e, apesar das diferenças de cada um, nasce um vínculo que torna o filme belo. E sendo proibido o contato físico entre eles, Max e Horst conseguem, numa das cenas mais sensíveis do filme, manter uma relação sexual só através das palavras, e os dois sentem um ao outro como se de fato estivessem juntos fisicamente. Bent traz um ar triste e pesado, mas deixa um fio de esperança para quem o assiste, e mostra que o amor sobrevive ao mais improvável lugar que se possa imaginar, aqui ilustrado pelo campo de concentração da cidade de Dachau, na Alemanha. Há muito drama contido no filme, mas toda essa dramaticidade não é gratuita, e sim traçada de forma coerente com o contexto histórico e com a carga emocional característica dos protagonistas. O desfecho pode trazer indignação a muitos espectadores, mas de alguma forma representa uma realidade que ainda hoje tem seus reflexos na intolerância humana. 

sexta-feira

Gaiolas, aquários e lambidas




Há tempos que desejo um animal de estimação. E nesses dias esse pensamento tem me contagiado ainda mais. Na verdade já tive um, quando eu tinha meus libertários treze anos. Era um cachorro, meio vira-lata, meio poddle, meio qualquer coisa engraçada. Isso foi nos anos em que eu morava em casa, com um quintal de aventuras e pulos de felicidade, onde eu corria com Ricky, meu ex-pet-amigo.  Mas hoje, nos meus vinte e sete anos de cansaço e preso num apartamento com os metros quadrados contados para dois seres humanos na contramão do tempo, eu e minha irmã, não há mais espaço para tanta liberdade.

Na minha atualidade, as espécies mais adequadas para a convivência seriam de dois grupos: os que vivem em aquários, e os que vivem em gaiolas. Entretanto, detesto qualquer coisa que sufoque ou indique privação, e gaiolas e aquários são meios de censura para qualquer espécie animal.  Mas já tive peixes, e a experiência não foi nada agradável, na verdade foi trágica. Em pouco menos de seis meses, cheguei a enterrar dezenas de peixinhos de todas as cores, no ritual em que eu e meus irmãos fazíamos buracos no quintal e sepultávamos os pequeninos cadáveres. Para nós era desolador ver o nosso aquário a cada dia se esvaziar. Desisti desses animais aquáticos.
Quanto aos pássaros, tenho completa aversão em vê-los atrás das grades, gritando por um bater de asas que é inerente ao espírito aventureiro desses seres. Eu nunca tive pássaros em gaiolas, mas meu irmão tinha prazer em colecionar os bichos engaiolados. Lembro que, vez por outra, eu discretamente abria as portas e libertava os animaizinhos, num ato de alforria que me era tão iluminado. Eu entendia perfeitamente o que significava um quebrar de correntes para uma espécie em que o céu é o limite.
            Além dos pássaros, outro animal freqüente em gaiolas são aqueles mamíferos que lembram ratos, só que mais sofisticados e carismáticos: os hamsters. Para ser sincero, não são tipos que me agradam, pois não vejo possibilidade alguma de travar vínculos de amizade com eles.
Já pensei também em gatos, que não vivem nem em aquários e nem em gaiolas. São independentes, discretos e charmosos. Mas não tenho boas relações com os felinos, eles são indiferentes quando o assunto é brincar, pelo menos comigo.
Decididamente não há mais o que especular a respeito. O que eu quero mesmo é um cachorro, apesar de tudo indicar para o não. “Você não pode ter um cachorro. Você não deve ter um cachorro. Você não tem como ter um cachorro”, é o que todos me dizem. E a principal repressora desse meu agudo desejo é minha mãe, uma anti-pet assumida. Embora não more com ela, minha mãe exerce sobre mim uma influência terrível (no bom sentido da palavra) e argumenta com veemência sempre que questiono o porque dessa negação: “ você não cuida bem nem de você, como irá cuidar de um animal. Um cachorro é como um bebê”.
Não sei se um cachorro faria minha vida ser diferente, se me daria outras formas de ser feliz. Talvez até quebrasse a minha rotina em pedaços, elevando meu nível de stress aos picos, me levaria a limpar excrementos por toda a casa e a dar banhos malabaristas nada agradáveis.  Gastaria toneladas de rações e doses de paciência com o tal bicho. Mas isso tudo é irrelevante. Não conta quase nada para aqueles que decidem adotar um pet dog. O que vale mesmo é ter alguém te esperando, ansioso e carinhoso, para te dar aquela lambida de saudade sem te guilhotinar com reclamações depois de um dia extasiante, ouvir tuas confissões sem dar conselhos padronizados e não cobrar nenhum favor pela tua companhia diária. Para mim, nesse mundo de cobras e lagartos, o velho e batido ditado de que o melhor amigo do homem é o cão ainda continua infalível.

domingo

Confissão maculada (Fragmentos do personagem Fernando Vitório)

"Preciso confessar algo urgente: eu assassino pessoas. Sou o que chamam de serial killer, e estou longe de psicopatias. Isso não me atormenta tanto quanto às minhas vítimas, mas é inerente e intransferível ao meu caráter. Mato não por mau instinto, nem por doença e muito menos por prazer, mas sim para dar corpo a uma mínima emoção que seja. Minha vida se nutre de morte, e não tenho tendências vampirescas. Não sou frio, calculista e nem metódico. Não sofri nenhum abuso quando criança. Todo o meu desejo assassino vem de uma pureza peculiar, nasce de uma intimidade que nunca houve precedentes. Vivo com isso em harmonia, pois sei que o que faço é digno. Mato pela minha sobrevivência emocional". 

Fernando Vitório 

sexta-feira

Apenas mais um na multidão


Elo, o quarto álbum de Maria Rita, abusa da repetição e se mostra pequeno e dispensável para expressar a força interpretativa da cantora



          Com a diversificação da música popular brasileira cada vez mais acentuada, com seu espectro de sonoridades e estilos muitas vezes inclassificável, indo das influências do jazz e blues ao genuíno samba de raiz, se firmar como um ícone da MPB não é tarefa fácil. Ganhadora de seis prêmios Grammy Latino entre os anos de 2004 e 2008 e com mais de um milhão de CDs vendidos em plena crise da indústria fonográfica, Maria Rita consagrou-se como um desses ícones. Entretanto, em seu quarto álbum, intitulado Elo, a cantora não toca na reinvenção e traz mais do mesmo, num cd embalado pela normalidade e modulado pela repetição. Elo impressiona pouco, e se caracteriza como um adicional e não como um diferencial na carreira da artista, que vem de um intervalo de quatro anos sem gravar nada, desde o seu terceiro álbum, Samba Meu, de 2007.
O novo álbum traz canções inéditas tocadas em sua última turnê, que ficou conhecida como um ‘”show sem nome”, e também a releitura de clássicos de Chico Buarque, Rita Lee, Caetano Veloso e Djavan, além de uma composição de Marcelo Camelo, presença constante desde o seu primeiro álbum. Elo resgata traços da sonoridade de seus dois primeiros discos, Maria Rita (2003) e Segundo (2005), na influência de elementos do blues e na formatação com piano, baixo e bateria, e se desconecta ligeiramente do Samba Meu (2007), composto só de sambas.
Nas regravações dos clássicos da MPB, Maria Rita peca pelo comum e não empolga tanto. Na interpretação de “A História de Lily Braun”, de Chico Buarque e Edu Lobo, canção exaustivamente gravada por diversos artistas brasileiros, a cantora se torna pequena na voz e na emoção, numa releitura sem energia e com arranjos batidos e inertes a qualquer vislumbre. Maria Rita também decepciona em “Menino do rio”, de Caetano Veloso, “Nem um dia”, de Djavan, e “Só de Você”, de Rita Lee, trazendo para as canções uma roupagem gasta e sem criatividade, em tons repetitivos e apáticos. De fato, não se questiona a regravação de clássicos pela cantora, mas como isso foi construído em Elo, dando a impressão de pouco esforço para inovar e impressionar quem a ouve. Já em “A Outra”, composição de Marcelo Camelo, Maria Rita consegue uma interpretação delicadamente forte, contraindo a canção a um grau de intimismo que se desprende de seu arranjo original cantado pelo grupo Los Hermanos.
Mesmo tendo abusado da neutralidade com os clássicos, Maria Rita se expressa com certo vigor nas canções inéditas, como na faixa que abre o disco, “Conceição dos Coqueiros”, composição do pernambucano Lula Queiroga, e em “Santana”, também de outro pernambucano, Junio Barreto, num dos raros momentos do disco em que a cantora explode em sensibilidade e potência vocal.
É claro que em Elo não podia faltar os sambas, constantes nos seus outros álbuns e marca característica da cantora, reunidos em três faixas do disco: “Coração a batucar”, “Pra matar meu coração” e “Coração em desalinho”, que por coincidência ou não, todas as três tem o mesmo substantivo no título. Os sambas de Elo se espelham na musicalidade apresentada anteriormente pelo álbum Samba Meu, e não fogem muito da reta desenhada antes pela cantora. “Coração em desalinho” foi, inclusive, música de abertura da novela Insensato Coração, da rede Globo. O que se vê é que não sobra espaço para a provocação criativa que tire os sambas do disco do lugar comum.
Elo, contrariando o próprio nome, nasce disperso e desajeitado para a carreira de Maria Rita. Fruto de exigência da gravadora e produzido em 10 dias entre um show e outro, o álbum registra músicas que dialogaram com a cantora em seus dez anos de profissão, pedidos de alguns amigos e canções tocadas apenas nos seus recentes shows. O disco é, segundo a artista, um presente para o seu público.
Entretanto Elo é, simplesmente, apenas mais um tímido disco para a multifacetada MPB, e ofusca a força que a cantora ergueu nos seus antigos trabalhos. Se não viesse de uma artista de sensibilidade interpretativa e de peso musical como Maria Rita, o álbum passaria invisível para os mais desatentos e dispensável para quem busca ousadia no universo fértil da música brasileira.  

terça-feira

NEUGATIVAS


Não. Não sou isso que vejo. Não sou aquilo que querem. 
Não sou ele que se imagina e nem aquele que se vive.

Sou o que se erra, o que se deseja, o que se esconde.

Não sou eu que fala, que ama, que dorme.

Eu sou o outro que se procura dentro do eu
que se perde no infinito da inconstância.
Esse outro que quer ser eu e esse eu querendo ser outro.

São tantos eus e tantos outros que de tanto se encontrar já se formam em um par. Na verdade já nem sei se quem escreve sou eu ou o outro que insiste em me guiar mesmo sabendo que eu já não posso mais me aceitar.
Procura-se uma crônica desesperadamente


Inspiração é uma coisinha cabulosa, só aparece mesmo quando tá a fim. Você fica lá, paralisado diante da tela ou do papel, tentando espremer o mínimo de originalidade e criatividade para escrever algo decente. É um sofrimento dos dedos estáticos e da mente em ebulição. É a dor da criação textual que, guardada às devidas proporções, pode ser agonizante.
Isso aconteceu comigo numa segunda-feira à tarde, numa aula de redação jornalística. Foi-me solicitado: “faça uma crônica de tema livre, de 600 a 800 palavras”. Parece simples para um estudante de jornalismo escrever um tantinho assim de palavras de um gênero consideravelmente agradável. Pode até ser viu, mas o que mais latejou e perturbou o meu pouco de juízo foi o “tema livre”. Livre! Livre... Livre? Ai se instalou o caos da dúvida, a pontada da indecisão. Primeiro, tentei pensar de modo racional e didático, fazer um índice de livro brotar na minha desorganização vespertina. A primeira pergunta surgiu como um início de salvação que precisava desesperadamente. “Afinal, o que caracteriza uma crônica?”. O pensamento se rebelou. Atualidade, ordem cronológica, cotidiano, literatura, humor, reflexão, liberdade, foi isso que estalava em mim. O que aconteceu comigo nesses dias que pudesse ter todas essas palavras dentro? Um fato atual do meu cotidiano que seguisse uma ordem no tempo que trouxesse um teor reflexivo com pitadas humorísticas e com uma escrita livre que beirava a literária. Assim mesmo, sem pontuação e com um repeteco de “quês” para dizer que não sei o que e não sei por onde. Nada. Nem um minúsculo sinal de vida criativa se manifestava naquela tarde.
Era preciso agir rápido. 15:04h. Tracei um breve panorama da semana: a pia do banheiro quebrou, o cachorro do meu amigo com suspeita de epilepsia (leia-se o cão, não meu amigo), fiquei desesperado quando meu celular descarregou, passei uma dia todo sem comer nada para ir a um rodízio que no final desandou, fiz exame de urina e minha mãe veio me visitar. Um resumo de semana digno de um capricorniano normal numa vida normal. Constatei que nada dessa lista singela de acontecimentos queria ser personagem de uma crônica de faculdade. Não menosprezando os eventos citados, cada um deles poderia inspirar uma bela história nos moldes “cronicológicos”. Mas não naquela tarde. Uma tarde de paralisia jornalístico-criativo-psicoliterário. Meu outro colega, sentado ao meu lado, também não havia começado nenhum traço. Tudo branco também. Aí pensei: “não estou sozinho nessa”. Que nada! Descobri que o faltava para ele não era a inspiração, nem o desespero do “tema livre”, era somente a concentração. Eu, ao contrário, já tinha me concentrado o suficiente para mover a China do continente asiático.
De repente, não mais que de repente, do líquido se fez o sólido, da casca se fez o recheio (qualquer semelhança com o Soneto da Separação, poema de Vinícius de Moraes não é mera coincidência, é palhaçada mesmo) e, ENFIM, saiu algo cronicamente classificável: o que se leu até agora e o que se vai ler até o fim da página. Presumo que tenha conseguido atingir alguns critérios do que se deseja numa crônica. Apenas presumo, e de forma discreta. Segui uma ordem cronológica (isso tenho certeza), descrevi um fato atual do meu cotidiano (aconteceu agorinha mesmo comigo), fiz uma reflexão (boba, mas fiz), acrescentei uma pitada de humor (isso não posso garantir de forma alguma), me aproximei da literatura (de bolso para iniciantes não-instruídos) e abusei da liberdade (esse critério fui eu que deduzi, nem sei se é aceitável do ponto de vista estilístico). Enfim, a ponto de preencher o limite de palavras estipulado pelas normas acadêmicas e poder encerrar essa preguiça mental, fica uma lição de vida: é de espremida em espremida que a crônica se consolida.


quinta-feira

Uma dorzinha que nem quer ser dor

É tanta lembrança que insiste a sair a toda hora, junto com umas lágrimas também. No estômago uma queimação ferve, e no coração pontadas agudas. A garganta parece que vai travar, um fôlego de enlouquecer. O corpo não sabe se vai ou se pára. A somatização da saudade é potencialmente sintomática, pode crer! Uma impaciência percorre a sua calma, tomando forma de um pânico indistinto. Quanto mais pensa em afastar os pensamentos, mais eles cutucam seu coraçãozinho. Saudade poderia também se chamar Selvagem. Nem adianta chá de camomila ou erva doce, quando ela bate só quer saber mesmo é de bater. E dói viu. Uma dorzinha que nem quer ser dor, mas já nasce sendo. Livro, chocolate, filme, e besteiras virtuais, nada resolve. Respeitamos ela, dona da vez e da verdade. Como dizia Clarice, “Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença.” E quando não se pode comer a presença, o jeito é seguir sobrevivendo a pão e água. Eita saudade doida essa!

quarta-feira

Celular: liberdade sufocada?

O celular trouxe para o homem mais autonomia e praticidade, mas também uma relação de dependência

De produto de luxo, o celular se popularizou e hoje se tornou um item constante na vida do indivíduo. Dos arcaicos “tijolos” até as atuais miniaturas, este aparelho vem incorporando cada vez mais recursos e funções, e essa alteração tecnológica tem exercido sua influência no comportamento dos seus usuários. Paralelo às inovações, a demanda de celulares aumentou vertiginosamente e é raro hoje encontrar alguém que não possua celular. Segundo dados da Anatel, o Brasil terminou o mês de abril de 2011 com 212,6 milhões de celulares, significando uma densidade de 109,3 celulares por 100 habitantes. Isto representa mais de um celular por brasileiro.
E essa explosão de aparelhos reflete uma idéia atual de que ter um celular é uma necessidade e não mais um acessório. De acordo com a pesquisadora social Janusy Mara, da Unicap, essa necessidade decorre por vezes não de um desejo pessoal, mas sim de uma exigência coletiva que faz gerar na pessoa o desejo pelo aparelho. “O indivíduo passa a estar subordinado a vontade coletiva, e sua necessidade é criada por seu grupo de referência, independente da classe que ocupa. O controle social está nos mecanismos de persuasão, difamação e exposição ao ridículo. A sociedade, criando a necessidade de se ter um celular, expõe quem não o tem ao ridículo”, diz Janusy. O celular vira então sinônimo de reconhecimento pessoal diante de uma sociedade da velocidade e da rotatividade, elementos incorporados na função social do aparelho celular.
E diante dessa necessidade imposta pela sociedade, o celular vem acompanhando as transformações exigidas por essa rapidez da vida moderna. Antes feito para a função básica de fazer e receber ligações, hoje este aparelho renovou nos recursos disponíveis, tornando-se um equipamento multifuncional. Câmera fotográfica, acesso à internet, tocadores de música e vídeo, GPS, rádio e conexão Bluetooth são itens constantes nos aparelhos. O especialista em tecnologia móvel, Filipe Rangel, explica essa característica: “Está ocorrendo uma acelerada convergência de tecnologias para o suporte do telefone móvel. O celular se tornou ponto de referência para a absorção de tecnologias novas. É a praticidade de poder juntar tudo num equipamento pequeno, onde as pessoas possam ter um grande poder de locomoção e autonomia”, revela Filipe.
Os recursos tecnológicos têm possibilitado aos usuários de celulares uma nova forma de comportamento. É possível captar fotos de onde se esteja, gravar vídeos de algum instante imperdível, se localizar através do recurso GPS, ouvir rádio, transferir arquivos através de conexão Bluetooth e o acesso a tão globalizada internet. Uma verdadeira concentração de recursos que permitem ao usuário ingressar em diversos processos informacionais e interacionais em movimento.
O acesso à internet é um dos recursos mais destacados, pois reflete essa dinâmica da interação tecnológica. Em muitos celulares de hoje, a internet, além da navegação virtual, dá suporte a redes sociais, como Twitter, Facebook e MSN, e com isso a relação do usuário com o celular ganha força. O dentista Flávio Bekerman, que já possuiu 15 aparelhos, mostra uma relação íntima com essa tecnologia. “A mudança na minha vida é total. Antes era um simples telefone. Agora, é meu computador móvel, minha companhia na hora do almoço, pois, enquanto sento sozinho para comer, tenho acesso à informação e me comunico com o mundo. Já virou um vício. Eu tenho de me policiar, pois tenho contas no Facebook, Twitter e MSN. Se eu me distrair, perco a noção de quanto tempo fico com o aparelho na mão”, afirma o dentista.
Outro aspecto dessa relação é a vantagem de poder concentrar toda essa portabilidade tecnológica em um só equipamento, que além de ser pequeno, pode ser usado em qualquer lugar. A gerente de lojas Maria Dalva ressalta: “Eu não preciso andar com câmera digital, notebook ou aparelho de mp3 quando saio de casa. Eu tenho todas essas funções dentro do aparelho, e isso me dá uma sensação de liberdade e de praticidade. Além de economizar dinheiro, economizo também complicações”, confessa Dalva. A estudante de odontologia Karen Richers utiliza o celular em todos os seus horários do dia, com o despertador para acordar, ouvir música no transporte coletivo e acessar a internet na faculdade. “Eu saio de casa sem a bolsa, mas não saio sem o celular”, desabafa a estudante.
Essa liberdade tão desejada traz um paradoxo que se sobressai em nossa sociedade, que é uma relação de dependência com o aparelho. Como explica a psicóloga Anna Lúcia, do Instituto de Psiquiatria da UFRJ: “Com esta nova liberdade, novas regras de coexistência têm influenciado e ditado pela comunicação e interação entre os indivíduos. Esta mobilidade leva a uma sensação de liberdade e a uma percepção de que podemos ter o mundo em nossas mãos. Essa sensação pode gerar um comportamento ambíguo de poder e medo”, diz Anna.
E já se fala em um transtorno relacionado a essa dependência, chamado de nomofobia, que se caracteriza como um transtorno do controle dos impulsos com um forte componente de ansiedade generalizada. De acordo com a psicóloga Sylvia van Enck, da USP, os nomofóbicos são pessoas que mantêm o celular à mão 24 horas por dia, abandonam as atividades para atender qualquer chamada do celular, sentem-se rejeitadas quando ninguém lhes telefona e apresentam crise de abstinência quando estão longe do aparelho, como alterações de humor, taquicardia, ansiedade e suores frios. Entretanto, muitas vezes a nomofobia fica camuflada devido ao fato da sociedade aceitar esse tipo de “abuso tecnológico” como natural. “A nomofobia pode acometer pessoas bem-adaptadas, que trabalham, estudam ou são casadas. Por isso, o problema não chama a atenção, são poucos sinais visíveis que denunciam a dependência”, alerta a psicóloga Juliana Bizeto, da Unifesp.
E nessa sociedade tecnológica em expansão, o desejo de consumo gerou uma necessidade do individuo de se organizar em múltiplos papeis sociais que exigem um alto poder de comunicação. E o celular é um instrumento nato desse processo. A pesquisadora Josyane Llannes explica: “Um indivíduo é ao mesmo tempo pai de família, empregado de uma fábrica e membro de um clube, de um partido político, de um sindicato, de uma igreja, etc. Essa complexa estrutura da sociedade acaba também demandando uma grande necessidade de comunicação entre os indivíduos. Porém, quando as pessoas se tornam dependentes dessa comunicação ativa, podem se tornar nomofóbicas”, conclui Josyane.