Procura-se uma crônica desesperadamente
Inspiração é uma coisinha cabulosa,
só aparece mesmo quando tá a fim. Você fica lá, paralisado diante da tela ou do papel, tentando espremer o
mínimo de originalidade e criatividade para escrever algo decente. É um
sofrimento dos dedos estáticos e da mente em ebulição. É a dor da criação
textual que, guardada às devidas proporções, pode ser agonizante.
Isso aconteceu comigo numa
segunda-feira à tarde, numa aula de redação jornalística. Foi-me solicitado:
“faça uma crônica de tema livre, de 600 a 800 palavras”. Parece simples para um
estudante de jornalismo escrever um tantinho assim de palavras de um gênero
consideravelmente agradável. Pode até ser viu, mas o que mais latejou e
perturbou o meu pouco de juízo foi o “tema livre”. Livre! Livre... Livre? Ai se
instalou o caos da dúvida, a pontada da indecisão. Primeiro, tentei pensar de
modo racional e didático, fazer um índice de livro brotar na minha
desorganização vespertina. A primeira pergunta surgiu como um início de
salvação que precisava desesperadamente. “Afinal, o que caracteriza uma
crônica?”. O pensamento se rebelou. Atualidade, ordem cronológica, cotidiano,
literatura, humor, reflexão, liberdade, foi isso que estalava em mim. O que
aconteceu comigo nesses dias que pudesse ter todas essas palavras dentro? Um
fato atual do meu cotidiano que seguisse uma ordem no tempo que trouxesse um teor reflexivo com pitadas humorísticas e com uma escrita
livre que beirava a
literária. Assim mesmo, sem pontuação e com um repeteco de “quês” para dizer
que não sei o que e não sei por onde. Nada. Nem um minúsculo sinal de vida
criativa se manifestava naquela tarde.
Era preciso agir rápido. 15:04h.
Tracei um breve panorama da semana: a pia do banheiro quebrou, o cachorro do
meu amigo com suspeita de epilepsia (leia-se o cão, não meu amigo), fiquei
desesperado quando meu celular descarregou, passei uma dia todo sem comer nada
para ir a um rodízio que no final desandou, fiz exame de urina e minha mãe veio
me visitar. Um resumo de semana digno de um capricorniano normal numa vida
normal. Constatei que nada dessa lista singela de acontecimentos queria ser
personagem de uma crônica de faculdade. Não menosprezando os eventos citados,
cada um deles poderia inspirar uma bela história nos moldes “cronicológicos”.
Mas não naquela tarde. Uma tarde de paralisia
jornalístico-criativo-psicoliterário. Meu outro colega, sentado ao meu lado,
também não havia começado nenhum traço. Tudo branco também. Aí pensei: “não
estou sozinho nessa”. Que nada! Descobri que o faltava para ele não era a
inspiração, nem o desespero do “tema livre”, era somente a concentração. Eu, ao
contrário, já tinha me concentrado o suficiente para mover a China do
continente asiático.
De repente, não mais que de repente,
do líquido se fez o sólido, da casca se fez o recheio (qualquer semelhança com
o Soneto da Separação, poema de Vinícius de Moraes não é mera coincidência, é
palhaçada mesmo) e, ENFIM, saiu algo cronicamente classificável: o que se leu até agora e o que se vai ler
até o fim da página. Presumo que tenha conseguido atingir alguns critérios do
que se deseja numa crônica. Apenas presumo, e de forma discreta. Segui uma
ordem cronológica (isso tenho certeza), descrevi um fato atual do meu cotidiano
(aconteceu agorinha mesmo comigo), fiz uma reflexão (boba, mas fiz),
acrescentei uma pitada de humor (isso não posso garantir de forma alguma), me
aproximei da literatura (de bolso para iniciantes não-instruídos) e abusei da
liberdade (esse critério fui eu que deduzi, nem sei se é aceitável do ponto de
vista estilístico). Enfim, a ponto de preencher o limite de palavras estipulado
pelas normas acadêmicas e poder encerrar essa preguiça mental, fica uma lição
de vida: é de espremida em espremida que a crônica se consolida.
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