Resisti enquanto pude escrever sobre ele.
Nenhum motivo especial me impedia, apenas e cruelmente a preguiça. Isso é o
mínimo que ele merecia de mim, acho que por ser covarde só lhe posso dar
palavras. Com certeza ele quer mais do “isso”: um bom prato de comida, um banho
revigorante, um emprego simples e uma casa para morar. Principalmente, uma
casa. Pois bem, amigos, ele não tem lar. Como não sei o seu nome e muito menos
quem ele de fato, o chamo, de O
Andarilho de Boa Viagem.
Explico-vos: Todas as manhãs, quando passo de
ônibus pela Avenida Conselheiro Aguiar, o vejo da janela: vestido com uma
bermuda rasgada, sujo, barba crescida e tristemente magro, passeando pela
calçada como se buscasse o que o mundo lhe privou. Da minha janela, na posição
confortável de inutilidade e covardia, o observo, na sua posição miserável de
esperança. Primeiramente, sinto por ele um dos mais indignos sentimentos: pena.
Depois, ódio. Ódio por ele ainda querer sobreviver com tamanha falta de vida ao
seu redor. Ainda bem que esse ódio passa rápido, graças ao meu estoque
inviolável de bom senso. Depois, divago o porque de sua situação, tentando
entender como ele atingiu o ponto de abismo.
E nesse breve mergulho matinal nas
entranhas famintas do Andarilho, eu percebo, com medo, que nós dois guardamos
distâncias que nos matam a cada dia: ele é distante do mínimo de humanidade
para sobreviver a extinção alimentar; eu, distante do máximo de ineficiência
para viver entre os solidários. A começar por isso que faço aqui: escrever um
punhado de especulações pseudo-literárias a quem agora se embrulha de fome e
frio! E de alguma forma, mesmo que ridícula, desenvolvi uma necessidade com
ele, uma dependência visual de encontrá-lo todos os dias. Necessidade quase
sempre correspondida, pois pouquíssimas vezes ele falhou comigo na presença
diária. E quando some o procuro na próxima esquina, com os olhos cínicos de
quem precisa a confirmação de sua permanência por ali. Uma espécie de distração
filosófica para a monotonia de uma avenida de prédios, cachorros bem tratados e
paradoxos urbanos.
De onde ele veio? Tem família? Como ele se alimenta? Ele
ainda guarda esperanças? Viverá até a sua próxima exibição para a minha janela
egoísta? Questiono calado no meu banco de passageiro. E sigo parado na minha
agenda de atitudes louváveis. E o Andarilho caminha, indo e vindo, não importa
a ordem, o essencial é o deslocamento. Para ele, o temor de amanhã não existe,
pois o seu hoje é sempre o último.
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