Dispenso definições. Escolho pela metamorfose de escrever livre, longe de qualquer vulto de encaixe. Se me perguntarem sobre o que é isso, hesito em responder. Apenas sinto...

domingo

Boa Viagem, Andarilho!

Resisti enquanto pude escrever sobre ele. Nenhum motivo especial me impedia, apenas e cruelmente a preguiça. Isso é o mínimo que ele merecia de mim, acho que por ser covarde só lhe posso dar palavras. Com certeza ele quer mais do “isso”: um bom prato de comida, um banho revigorante, um emprego simples e uma casa para morar. Principalmente, uma casa. Pois bem, amigos, ele não tem lar. Como não sei o seu nome e muito menos quem ele de fato, o chamo, de O Andarilho de Boa Viagem

Explico-vos: Todas as manhãs, quando passo de ônibus pela Avenida Conselheiro Aguiar, o vejo da janela: vestido com uma bermuda rasgada, sujo, barba crescida e tristemente magro, passeando pela calçada como se buscasse o que o mundo lhe privou. Da minha janela, na posição confortável de inutilidade e covardia, o observo, na sua posição miserável de esperança. Primeiramente, sinto por ele um dos mais indignos sentimentos: pena. Depois, ódio. Ódio por ele ainda querer sobreviver com tamanha falta de vida ao seu redor. Ainda bem que esse ódio passa rápido, graças ao meu estoque inviolável de bom senso. Depois, divago o porque de sua situação, tentando entender como ele atingiu o ponto de abismo. 

E nesse breve mergulho matinal nas entranhas famintas do Andarilho, eu percebo, com medo, que nós dois guardamos distâncias que nos matam a cada dia: ele é distante do mínimo de humanidade para sobreviver a extinção alimentar; eu, distante do máximo de ineficiência para viver entre os solidários. A começar por isso que faço aqui: escrever um punhado de especulações pseudo-literárias a quem agora se embrulha de fome e frio! E de alguma forma, mesmo que ridícula, desenvolvi uma necessidade com ele, uma dependência visual de encontrá-lo todos os dias. Necessidade quase sempre correspondida, pois pouquíssimas vezes ele falhou comigo na presença diária. E quando some o procuro na próxima esquina, com os olhos cínicos de quem precisa a confirmação de sua permanência por ali. Uma espécie de distração filosófica para a monotonia de uma avenida de prédios, cachorros bem tratados e paradoxos urbanos. 

De onde ele veio? Tem família? Como ele se alimenta? Ele ainda guarda esperanças? Viverá até a sua próxima exibição para a minha janela egoísta? Questiono calado no meu banco de passageiro. E sigo parado na minha agenda de atitudes louváveis. E o Andarilho caminha, indo e vindo, não importa a ordem, o essencial é o deslocamento. Para ele, o temor de amanhã não existe, pois o seu hoje é sempre o último. 

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